Ser Formiguinha ou Elefante?

Eu tinha apenas treze anos quando fui estupidamente arrancada da minha terra natal (Aporá - Bahia) sem ao menos ter opção de escolha. Enquanto meu pai apertava o seu velho chapéu sobre o peito tentando suportar a dor de perder nove filhos, eu chorava baixinho para suportar tamanha crueldade.

Na medida em que o caminhão (Pau de Arara) partia, eu via meu pai se distanciando e a minha dor, dúvida e incerteza iam aumentando... Assim, chegamos em São Paulo, depois de vários dias na estrada e nos escondendo embaixo de uma lona como se fôssemos carga.

São Paulo, ah, São Paulo... Lugar grande e assustador. Tudo me dava medo. Como?? Que absurdo alguém ter que comprar o seu próprio alimento. Lá na roça, a gente plantava, colhia e criava animais para o nosso próprio sustento e aqui, não. Que horror!

Morando num ambiente pequeno e totalmente desconfortável, só me lembrava da casa lá do sítio e então chorava. Chorava de saudades do meu pai, dos meus amigos, da minha casa e principalmente, sentia saudades de mim, da minha vida.

Foi então que a fome veio juntar-se ao meu sofrimento. Fome, medo, dor... Era tudo o que eu tinha naquele momento. Entre pequenos furtos e ajudas, sofrimentos e revolta, cheguei aos dezesseis anos e, em 1972 comecei a trabalhar. Que maravilha! Ia poder realizar dois grandes sonhos: ter um sapato envernizado de salto bem alto e uma boneca grande, tão grande como a que a minha prima tinha e que nunca deixou eu brincar...

Com o primeiro salário eu comprei o tal sapato, comprei o primeiro que vi (nem sabia esse negócio de numeração), nem experimentei e não precisa nem dizer que não serviu para mim, era bem maior do que eu calçava.

O tempo passou e aos 17 anos resolvi sair da empresa onde trabalhava e fui visitar o meu pai .Aquele foi o dia mais feliz da minha vida! Curti cada momento, desde a saída de São Paulo até o reencontro com o meu pai. Foram momentos mágicos, e pela primeira vez na minha vida eu senti aquilo que se chama de felicidade. Eu, meu pai, minha gente, meu mundo... MEU EU. E assim, vivi feliz por três meses ao lado do meu pai.

Voltei para São Paulo, sem saber o que realmente me aguardava. Não imaginava que o pior ainda iria acontecer... Já não tinha casa para voltar, estava só e com muito medo. Então procurei uma senhora, com o nome de Severina, mãe de santo e mãe daquele que seria o meu primeiro amor, o João. Bom, mas o João já é outra história.

Fui trabalhar como empregada doméstica e dormia no emprego. Um dia, briguei com meus patrões, peguei minhas coisas e fui embora... Embora para onde?? Praça Ramos de Azevedo, onde seria meu lar naquele momento. Encolhida em um banco e com uma pequena sacola nas mãos, eu chorava com medo do que poderia me acontecer... Mais uma vez fui dormir na casa da D. Severina e naquela noite eu não conseguia dormir, pensando o que faria no dia seguinte e, concentrada nas minhas preocupações, levantei-me e fui tomar um copo de água e o João teve a mesma idéia...

No dia seguinte, procurei uma agência de empregos e comecei a trabalhar como babá. Me sentia feliz trabalhando e podia até pensar um pouquinho mais no João e até, quem sabe, ele me olhasse. Quem sabe? Era Natal, meus patrões viajaram e eu fiquei sozinha na casa em um quartinho nos fundos. Naquele dia, acordei muito tarde e com fome, fui à padaria e pela primeira vez na minha vida ouvi a expressão “Feliz Natal” e ainda de um estranho. Naquele dia chorei muito porque não tinha família, ceia e nem presentes.
 
No Ano Novo resolvi ir na casa da D. Severina (mãe do Jõao) e, para minha tristeza, o Jõao estava lá com a noiva, até então eu não sabia que ele era noivo. Mais sofrimentos.

Eu decidi que não queria mais ser babá, que ia morar sozinha e trabalhar em fábrica e assim fiz. Morando numa pensão miserável e trabalhando em uma fábrica e ganhando muito pouco, fazia no máximo uma refeição por dia, pois o que ganhava mal dava para pagar a pensão e a passagem do ônibus.

Fui perdendo peso, ficando debilitada e para sobreviver aos fins de semana ia almoçar e jantar na casa da D. Severina. Lá encontrava João... Meu Deus. O fato de vê-lo com a noiva me incomodava muito, mas tinha que suportar pois minha fome parecia maior do que o meu amor ou o que eu pensava que era amor.

Um dia,ao chegar na casa do João, percebi que ele estava sozinho, a noiva dele tinha ido embora, pois tinha dado no rádio que o Elvis Presley tinha falecido e ela tinha preferido ir embora, pois estava com muita dor de cabeça. Pela primeira vez, pude me aproximar do João e no dia seguinte já éramos namorados... Mas isso é outra história.

Após um tempo comecei a fazer minhas refeições no supermercado PegPag entre a sessão de frutas e os frios. Em 1980 conheci um senhor, vinte dois anos mais velho do que eu, aquele com quem eu iria me casar mais tarde e com quem eu teria dois filhos e com quem estou casada há trinta anos.

Hoje, sinto uma cratera na minha alma, sinto falta de tudo o que não tive e principalmente de uma família base.

Quanto à boneca que tanto sonhei, consegui aos 40 anos, é a “amiguinha” da década de 70 e é o melhor presente que já me dei. Hoje trabalho com bonecas de pano e sou apaixonada pelo que faço. Exponho em feiras de artesanatos e grêmios e assim me faço feliz.

Aprendi com a vida que o mundo é uma selva onde eu podia optar por ser formiguinha ou elefante e podem acreditar, eu optei por ser elefante, assim como também construí uma barreira à minha volta e poucas coisas ultrapassam tal barreira.

Se sou feliz de verdade, não sei!! Mas luto por mim a cada momento da minha vida.

Prefiro não falar muito do João.

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