Virtude Imperecível - Marcela Brown*

maya
Postado em:
23/06/2014 - 11:41
Reprodução: pinterest.com

Fui presenteada, no último dia 16, com uma edição de Anna Karênina. Completava 32 outonos e bati os olhos na primeira sentença da obra de Tólstoi, que sempre me despertou fascínio absurdo: “Todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” Meu aniversário deste ano coincidiu com o assassinato do meu primo-irmão Gabriel. Até então, eu pertencia a um grupo familiar privilegiado: composto de alegrias e aflições, êxitos e presepadas, festas e melancolias, sabores e dissabores. Como deve ser. Mas com a mesma idade que eu, o Gabi tornou-se notícia fatal antes que findasse a data do meu nascimento.

Foi sepultado um dia antes de seu pai somar 65 anos de vida.

Sem aviso prévio e ao modo da abertura de Karênina, a infelicidade veio integrar-se a nossa família, agora marcada e pisoteada por uma desgraça inigualável, cruel, brutal. Há algo de incompreensível na raiz do mal. Ainda que a dor que nos castiga reverbere em uma sociedade solidária e perplexa (embora calejada pela selvageria), nosso sofrimento é pessoal e intransferível. E o mais difícil não é amparar o padecimento alheio. A pior parte, sejamos francos e cristalinos, é encontrar forças e consolar a nós mesmos para sermos capazes de nos prestarmos a qualquer suporte.

Nada que se mova ou que seja inerte poderá reparar nossa revolta, desilusão. Não sabemos bem ao certo se o perdemos ou se ele apenas partiu antes de nós.
Perguntas sem respostas, filhos sem o pai, pais sem o filho, esposa sem o marido, irmã sem o irmão, amigos sem o amigo. Gente que se preenchia de gente e que agora se vê obrigado a subsistir nesta lacuna, com o insólito destino a inverter o ciclo da vida, sem piedade. Meu primo, nome de anjo, lutou sangrando para salvar sua família. A morte dele revelou uma virtude que para sempre lhe pertencerá: a coragem. Honra e bravura jamais perecem. Onde estava Deus quando Gabriel nos deixou? Concedendo-lhe a chance de ser corajoso. E ele foi.

*Marcela Brown é jornalista.
Texto originalmente publicado no Jornal NH, em 21/06/2014.