O Voo Como Martírio

precisofalar
Postado em:
21/10/2009 - 16:41

Um Ilustre e Imortal nos brinda com sua crônica - Moacyr Scliar

Com a expansão da classe média e a possibilidade de conseguir passagens a preços acessíveis, cada vez mais brasileiros estão viajando de avião. E isto muda aquilo que poderíamos chamar de "a cultura da viagem aérea". No passado, essa cultura caracterizava-se, antes de mais nada, por um refinamento frequentemente exagerado. Os homens viajavam de terno e gravata, as mulheres com vestidos elegantes. Lautas refeições, muitas vezes acompanhadas de vinhos finos (não chegavam ao Romanée Conti, mas quase), eram servidas. Tudo isto custava muito caro, e o resultado é que as aeronaves não raro decolavam semi-vazias. Numa viagem para o Exterior a gente podia pegar uma fila inteira de poltronas e espichar-se nela como numa cama. Melhor que a primeira classe.

Isto acabou. Os aviões estão cheios, o espaço para os passageiros, como observou tempos atrás o ministro Nelson Jobim, não é dos maiores. O que até seria suportável. Mas há situações, criadas por algumas pessoas, que transformam o voo em verdadeiro martírio.

A primeira situação é representada pelo cara que entra carregando uma gigantesca mochila, maletas, pacotes. Ele para no corredor e vira-se de um lado para outro em busca de seu lugar. E cada vez que o faz golpeia-nos com sua mochila que, para causar mais dano, vem equipada com uma dura fivela de metal. Quando o passageiro finalmente consegue sentar, jazemos em nossos bancos, nocauteados - e por uma mochila, o que é um vexame maior ainda.

O segundo caso é o do passageiro, ou da passageira, praticantes daquilo que poderíamos chamar de "o imperialismo do compartimento de bagagem". Essas pessoas simplesmente monopolizam todo o acanhado espaço para este fim destinado, e não hesitam para isso em rechaçar furiosamente a bagagem, ou o casaco, ou qualquer outra coisa pertencente aos demais passageiros.

O terceiro caso é o passageiro transbordante. Ele transborda de sua poltrona, às vezes por causa de seu volume corporal, mas não raro por simples má educação - e aí, pobre de quem senta ao lado.

No quarto caso temos o passageiro, ou a passageira, que falam alto. Há variantes. Por exemplo: um grupo que vai fazer uma excursão e está excitadíssimo com a viagem. Um time qualquer (desde que não tenha sido derrotado no dia anterior). Namorados. Pessoas que, para sua surpresa, encontram-se no voo. Pode acontecer que estes interlocutores estejam separados, um em cada ponta da aeronave. Isto não impedirá o diálogo, que aí se realizará aos gritos. Pouco importa que se trate de um longo voo noturno, com passageiros querendo dormir. A conversa tem precedência sobre tudo. Às vezes não é só conversa. Já viajei ao lado de um cara que cantava. Cantava alto, e cantava horrivelmente mal, mas com um entusiasmo de tenor de ópera.

E depois temos o passageiro que, sentado junto à janela, quer ir ao banheiro a cada cinco minutos, e faz os demais se levantarem. Não adianta sugerir que ele sente na poltrona do corredor. Não, ele gosta da janela. E gosta de levantar. Azar dos outros.

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Se Santos Dumont tivesse antecipado todas estas situações provavelmente não teria inventado o avião. Mas agora é tarde. Que saudades dos tempos em que se viajava a cavalo.

Moacyr

Moacyr Scliar

Postado em: 
22 de outubro/2009