Ângela

precisofalar
Postado em:
23/10/2009 - 16:19

Bonaparte Jobim, advogado e escritor, nos brinda com um de seus contos.

Começou como começam as histórias de amor, portanto não vou contar nada de novo, mas insisto em fazê-lo mesmo assim porque, se por um acaso um dia encontrarem comigo, quero que saibam a razão de eu estar junto com um de vocês.

Sentávamos um ao lado do outro. Era uma turma mista no Colégio Franciscano. Desde o primeiro dia de aula eu fiquei cativado, nunca tinha visto, nunca tinha convivido com uma menina assim, ela era mágica pura.

Seu nome era Ângela.

Na inocência dos nossos doze anos iniciamos uma relação enclausurada pelas perguntas não feitas, pelos silêncios, pelos descuidados toques de mãos e, na impossibilidade de entendermos o seu significado nos recolhíamos em sonhos solitários. Sabia que não sentia em relação a ela o mesmo que sentia pelos outros que me cercavam, no pequeno mundo que meus passos alcançavam. Não, com ela era diferente, na sua presença secava a boca, embolava o estômago, tremia sem sentir frio, incendiava sem sentir calor!

Hoje é fácil entender o que estava acontecendo: estava amando! Tolamente, pois, não só não sabia nada de amor como desconhecia que as pessoas não são iguais. Somos divididos em classes e, às vezes, o destino, este falsário das emoções, nos engana ou se engana, ao misturar os desiguais.

Eu sentia a distância que nos separava, embora igualasse esta diferença com notas superiores à dela, com comportamento exemplar, tudo para merecer sua atenção e para manter a bolsa de estudos oferecida pela municipalidade para alunos carentes.

Ela não saia do meu pensamento. Perdi a posição de goleiro no time da aula por sua causa: na decisão do torneio interno perdemos para o 3º ano porque levei um frango pensando nela; ao invés da bola somente via seu rosto sorrindo para os outros.

A mãe dela me deu a saída. Foi numa quermesse de fim de ano. Num grupo de amigas ela dizia: - A minha filha é especial, vou procurar um Anjo para ela! Com isso simplificou tudo. Ela queria um Anjo? Pois eu daria um Anjo para ela. As duas moravam num Edifício com nome do avô da Ângela na porta de entrada - pai da mãe dela. O velho além de ter deixado uma herança muito grande deixou um nome a zelar já que durante muitos anos foi Cônsul, tanto que, no terraço tinha uma bandeira do Chile, que, mesmo depois da sua morte, continuou tremulando, em sua homenagem.

Subi no terraço, vesti-me de Anjo, passei uma corda na cintura, enfiei pelo suporte da bandeira, e, segurando firme com as duas mãos fui descendo. Logo, cheguei ao quarto andar, devagar, com todo o cuidado, alinhei com a sala do apartamento. A velha estava sentada lendo um jornal, quando me viu deu um grito de espanto e caiu desmaiada e Ângela, infelizmente abanou para mim. E, eu, impensadamente, respondi...

A minha primeira impressão é que o céu era muito bem organizado. À minha espera estava um Anjo, com vestes azuis, que se apresentou como relator do meu processo de admissão. Em minha defesa diga-se que, desde o início, tentei argumentar. Queria contar que não era colega dele e que tudo não passava de um engano. Foi uma brincadeira que deu errado! Aguardei repassando todo o acontecido, várias vezes. Quando o relator voltou com a decisão favorável, ou seja, eu estava inscrito como Anjo, ao tentar protestar, ele disse: - Nós sabemos tudo o que se passou. A tua sinceridade obrou em teu favor, teus pensamentos revelaram por mais de uma vez a tua honestidade. Parabéns! Aqui estão as tuas asas, as vestes e as obrigações iniciais.

Passei a mão para afastar uma nuvem passageira que se interpunha entre eu e a tábua onde estavam determinadas as tarefas e li: “Serás Anjo da Guarda da Ângela”! Assim, dediquei-me a cuidar e zelar pela Ângela. Ela cresceu, se fez mulher, casou, teve três filhos, duas meninas e um menino, enterrou a mãe e o marido, foi feliz, infeliz, e hoje está morrendo e eu estou ao seu lado.

No quarto do hospital o clima estava pesado, ela era muito querida pelos filhos e amigos, sofreu como sofrem os justos. Pediu para ficar só no momento final. Incorporei no seu médico e fiz entrar os filhos, e ela embora com a voz fraca e combalida, deixou uma palavra de coragem e de amor para cada um deles. Finalmente todos saíram e o quarto ficou vazio habitado pela penumbra da morte. Ela suspirou, descansou o peito magro e, timidamente, virou para mim, como se fosse me pedir a borracha emprestada ou a caneta ou o tema de amanhã, estendeu o braço e disse arfando: - Obrigada por tudo, eu nunca te esqueci!
 

Dudy

Bonaparte

Postado em:
26 de outubro/2009