A Carta

precisofalar
Postado em:
03/09/2009 - 15:01

Bonaparte Jobim, advogado e escritor, nos traz outra pérola de conto.

Amanheci com o diabo no corpo.

A minha figura refletida no espelho, fantasiada de alegria, confirmava o vaticínio matinal! Três da madrugada! Fazia, pelo menos, a minha décima visita ao banheiro, o porteiro já me chamava pelo apelido. Olhava em dúvida o meu reflexo, embora iguais, pensávamos diferente, se parte de mim aconselhava voltar para casa, o resto me afirmava que melhor lugar, no mundo, não existia, além do mais, um diabinho assoprava no ouvido esquerdo: “depois das duas a bronca é a mesma!”

Mas o porre vacilou, abriu uma brecha, e veio a realidade: hoje a Sandrinha me mata! Sai da boate sem passar pelo salão. Paguei a conta para o garçom e me mandei pelos fundos: levei medo da luz negra e da pista de dança; a vontade de ficar era muito grande.

No táxi comecei a montar uma desculpa, não queria ainda usar a da carta, essa era para uma confusão maior, ia adotar a clássica: a turma, grandes recordações, uns tragos a mais, dois solteirões no grupo, solidão, papo da faculdade.

A carta não!

Não dei conversa para motorista, migrei do torpor do porre para uma consciência básica e refleti sobre o meu casamento. Sandrinha era bonita, rica, educada, me deu dois filhos, tinha renda própria, um foguete na cama, enfim, mais do que se pode esperar de uma mulher. O problema sou eu, não consigo abandonar os hábitos adquiridos na boemia, eles são recorrentes, posso até, com muito esforço, desprezá-los, mas, esquece-los, impossível.

A maneira que encontrei para conciliar os extremos foi de não deixar que invadissem a minha vida afetiva: nunca!

- O senhor falou comigo - perguntou o motorista.

- Não - respondi surpreso.

Na minha solução, a mulher da minha vida era a Sandrinha, os meus desvios de conduta, não passavam de acidentes de percurso. Obviamente ela não sabia desta fórmula afinal a verdade não deve ser socializada.

Peguei o troco e dei cinco de gorjeta para o motorista, desci do carro, respirei fundo e fui encarar a bronca. A noite estava calma, corria um ar de outono lambendo a calçada vazia, nada prenunciava ou identificava uma crise, mas ela existia. As luzes da casa, no térreo, estavam acesas. Quando entrei dei com ela sentada no sofá da sala e, no exato momento em que o relógio marcou quatro horas, sem olhar para mim, ela disse: - A Mara me contou que tens uma amante e, na verdade, a tua conduta não desmente esta informação; por favor, pega a tua mala e vai embora!

Esta sempre foi a minha assombração: perder a família! Cara feia, vaca amarela, greve de sexo, desaforo, tudo bem, mas largar de casa, nem pensar. Prevendo isso, tinha inventado a desculpa da carta, com a cumplicidade de um parceiro da noite, sem nome e sem rosto, culpado que nem eu. E, infelizmente, pelo visto, ia ter que usá-la como último recurso.

- Sandrinha, presta atenção. Não te precipita. A Mara sempre teve ciúmes da tua felicidade, é uma baita alcoviteira, desde a separação ela enxerga guampa em cabeça de cavalo!

- Não gasta conversa comigo - ela disse, perigosamente calma, vai embora. Quando comecei a namorar a Sandrinha vi que ela tinha estrada, tinha passado, ninguém faz o que ela faz na cama sem aprendizado e não fui eu quem ensinou. Abri uma cerveja e, com certa solenidade, tanta quanto a ocasião permitia, indaguei: - Ela apresentou alguma prova?

- A Mara é minha melhor amiga, para mim o que ela diz é lei. Tu és um baita sem-vergonha! Está tudo terminado entre nós. Vai embora!

O tom de voz dela curou de vez a bebedeira e me alertou: ela falava sério! Tomei um gole e argumentei, caindo lomba abaixo: - Basta uma mera declaração prestada por uma invejosa que arrasta a asa para mim para fazer terra arrasada de dez anos de casamento?

- O quê? Tens coragem de falar mal da minha melhor amiga? Ela jamais faria isso! Vai embora, para de mentir.

- Sandra! Eu nunca pensei que usaria o recurso que vou usar, entretanto, não tenho alternativa. Vou te provar que este casamento durou, até hoje, muito mais pela minha conduta que pela tua e, ao contrário de ti, acusações sem provas, não passam de sacos vazios!

Antes de subir as escadas, para ir buscar a carta, dei uma olhada rápida para ela e pressenti que estava em dúvida. Rapidamente, para não perder o impacto, voltei e, antes de abrir o envelope, disse: - Esta carta recebi há cerca de dois anos. Conta, detalhadamente, a tua conduta quando estou viajando. Juro! Nunca dei bola, mas quando me pões contra a parede, por uma noitada inocente, não vejo outra atitude a tomar.

Vai, escuta: “Doutor. A Sandrinha é figura manjada nos motéis da zona norte. Pega uma foto dela, junta uma nota de cem, e mostra nas portarias, vais ter uma grande surpresa. Ficarás sabendo o que ela faz nas tuas viagens ...” .

Desculpa, não vou ler mais, tenho vergonha. Ela baixou a cabeça, parecia que ia chorar [eu tinha certeza, estava golpeada de morte, o meu plano era infalível] entretanto, deu uma guinada nos cabelos jogando-os para trás, interpretou uma risada vulgar, e gritou, em alto e bom som:

- É mentira de quem disse - não gosto de motel -, eu dou é no apartamento do teu priminho e só dou para ele, não sou galinha que nem tu!

Atirei a mala no banco traseiro, sentei, e, muito mais por curiosidade do que raiva, dei uma olhada pelo retrovisor: o priminho tinha trocado de carro e, pelo visto, de mulher também. Ao manobrar, para ir embora, tive a atenção despertada para as folhas, pois, como o vento tinha cessado, elas estavam quietas, deitadas no chão, tinham parado de dançar e, depois, ao arrancar o carro, no fundo da noite, ouvi um choro de criança, o Júnior, meu primogênito, tinha acordado com os gritos, freei bruscamente, virei a cabeça, exclamando assustado:

- Será que é meu filho? 
 

 

 

Dudy

Bonaparte

Postado em:
07 de setembro/2009